Procusto era um dono de uma propriedade entre Atenas e Eleusina e tinha duas habilidades destacáveis. Uma, a persuasão, pois convencia os viajantes que ali passavam a trocar uma ideia com ele, conversar, jantar e, após alguns vinhos, relaxar e por fim se "hospedar" em sua propriedade. Sua outra habilidade, era com um machado: mutilava qualquer um que ali se hospedasse, na calada da noite. Sua promessa era de uma cama perfeita para cada viajante e ele entregava o que prometia: amputava membros de pessoas altas, esticava e deformava membros de pessoas baixas. Se você fosse alto, iria para cama pequena. Se fosse baixo, iria para a grande - apenas pelo prazer sádico dele. Ele prometia algo personalizado e entregava - só que ele mudava justamente a variável que ninguém esperava: o corpo e não ao invés da cama. Na mitologia grega, a morte de Procusto veio quando o mesmo resolveu tentar a sorte com Teseu (o mesmo que matou o Minotauro - tema da minha tatuagem do braço direito, inclusive). Teseu o matou utilizando seu mesmo método: colocou-o numa cama pequena e o decapitou (cabeça = razão; foi um corte desse racionalismo que tente encaixar todo mundo em uma única fórmula).
O mito da cama de procusto, apesar de macabro, nos leva a reflexões sobre como impor medições e categorias às pessoas, sem ter um critério para medir o perfil da pessoa, pode causar dor e distorções. Você encaixa a pessoa dentro de uma categorização, mas a que custo?
No treinamento físico, o princípio da individualidade seria algo "anti-procusto", é justamente colocar o olhar sob a perspectiva do outro, considerar sua morfologia e outras características individuais antes de encaixar a pessoa em algum esquema.
Rudolf Plukfelder, que além de campeão olímpico, foi também treinador de campões olímpicos, sempre defendeu um sistema de treino MUITO forte, rígido, porém ainda assim olhando caso a caso e usando uma etapa de 4 passos para garantir que cada indivíduo tenha o treino "ideal" para si. Essa etapa de 4 passos eu sempre explico nos meus cursos, foi algo que peguei com um treinador alemão que conheceu a lenda Plukfelder. É basicamente um passo a passo de teste, observação, análise e um segundo teste. Como devemos trabalhar essa dicotomia entre um sistema muito forte e ao mesmo tempo com flexibilidade para os indivíduos? Uma das formas de organizar isso tudo, no que tange ao controle de volume, é o MEV e MRV. Esses dois conceitos de volume mínimo efetivo e volume máximo recuperável são fundamentais para montar um volume de treino adaptado para o indivíduo com o qual trabalhamos. E quais são os principais parâmetros do MEV/MRV?
Gênero (mulheres suportam mais volume, de um modo geral)
Peso corporal (mais massa magra = recuperação mais lenta)
Proporção de fibras brancas/vermelhas e tipo de estímulo (cargas máximas exigem maior descanso)
Altura (mais altos = maior amplitude de movimento)
Proporção entre segmentos corporais (tíbia, fêmur, tronco, etc)
Técnica utilizada (movimento com amplitude menor = trabalho menor gerado)
Nível de maestria esportiva (em qual estágio da preparação plurianual o indivíduo está?)
Forma esportiva atual (está adquirindo F.E? Ou já atingiu? Está em pico?)
Idade (mais novos = recuperação rápida)
Dieta (déficit calórico reduz capacidade de suportar muito volume de treino)
Motivação e capacidade volitiva atual (mais força de vontade otimiza resultados)
Estresse fora do treino - este é um tópico que quero abordar de forma aprofundada em uma próxima postagem aqui, pois vejo que a relação que fazem disso é bem errada. Tenho clientes que, sob maior estresse de vida pessoal, produzem muito mais resultado no treino. Há muita má informação por aí sobre este tema.
A individualidade não é o único principio da teoria do desporto e em alguns casos, ela deve até ser questionada em prol de um objetivo mais coletivo - imagina você tentar entrar pro BOPE e pedir uma bateria de testes que respeite sua recuperação e razão fêmur/tronco? Tá de sacanagem né.
Às vezes mandar um fod4sse pra individualidade é necessário.
Mas, em treinamento esportivo, se quem monta os treinos não considerar cada um desses parâmetros supracitados e sua interrelação, há um risco de um trabalho submáximo. Alguém vai se dar muito bem, alguém não. Não há fórmula exata: cada caso requer sua investigação.
Os princípios do treino devem ser rígidos - é o esqueleto, a filosofia do treino. Mas há pequenas adaptações que sempre devem ser cogitadas, debatidas, otimizadas. O treino é mais dialético na sua montagem do que meramente lógico, trabalhamos com possibilidades e nem sempre certezas matemáticas. Para Flaubert, o idiota sempre precisa "definir", "categorizar".
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